Sonhos, Loucura & Sublimação
Para quem ainda não sabe sou escritor e professor de língua portuguesa, redação e literatura. Não sei lecionar desvincilhando uma coisa da outra - Coisas de professor. Por tanto, segue agora um artigo publicado no ELLUNEB 2013 - Modos de Ler: Oralidades, escritas e mídias. Não façam plágio, pois é crime inafiançável segundo a LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998.
Esse artigo é muito importante, pois foi o meu primeiro e como já está registrado e publicado segue-o na íntegra. Aliás, o tema é maravilhoso ou melhor fantástico.
RESSONÂNCIAS DO FANTÁSTICO NA AMÉRICA LATINA:
A construção da
realidade meta-empírica no filme O Labirinto do Fauno
RESUMO
A finalidade deste
artigo é analisar a construção da realidade meta-empírica na obra
cinematográfica O Labirinto do Fauno,
dirigida pelo cineasta mexicano Guillermo del Toro, realidade esta
possibilitada pelo diálogo com os postulados da Crítica Literária Estrutural
introduzidos por Tzvetan Todorov acerca de elementos do discurso literário e
pelo antropólogo estruturalista Joseph Campbell. Este ao abordar na Narratologia a tese
do Monomito, propõe um modelo comum – em maior ou menor grau – a todas as
narrativas pré-modernas. Paradigma também adotado pelo filme que, devido ao
enfoque em fragmentos da Guerra civil espanhola, possibilita uma percepção
estética da mesma, a partir do gênero fantástico ou meta-empírico cuja
relevância nas últimas décadas do século XX fez desse gênero um tópico
relevante na discussão dos novos rumos da literatura contemporânea, embora
ainda seja comum, mas inaceitável, o descaso do gênero fantástico no panorama
crítico literário nacional. Nos últimos cem anos 873 milhões de livros do
gênero em foco foram vendidos, sendo 460 milhões esgotados nos últimos vinte
anos devido ao fenômeno Pottermania. A recepção crítica sobre a estética
literária de algumas dessas obras são consideradas de má qualidade, pois as
produções contemporâneas quase sempre apresentam a mesma tendência narrativa,
fugindo da originalidade. Porém, das vertentes do fantástico, a América Latina
apresenta tanta singularidades que fragiliza as próprias delimitações do
fantástico realizadas por Tzvetan Todorov, o que demonstra a carência de estudos
críticos sobre a anatomia do fantástico e seus desdobramentos. Um exemplo dessa
triste realidade foi o estudo realizado pela Fundação Agência Brasil pelo
historiador, escritor e professor da PUC-RIO, João Alegria, cuja pesquisa
aponta que os títulos de literatura fantástica não costumam ser incluídos nas
listas dos cadernos literários, das análises e das leituras dos críticos
nacionais, com efeito, a invisibilidade dos processos de formação dos sujeitos
leitores e de suas preferências literárias aumenta assim como o abismo entre a
academia e o gosto popular que merece, incisivamente, um estudo de caso. A obra
de Del Toro, por fugir do pólo cultural do cinema americano e estar imbuída nas
manifestações literárias efetivadas na contemporaneidade, resgata acervos
documentais da guerra civil espanhola como plano de fundo ao fantástico
dissolvido na trama narrativa. Por tanto, o diálogo entre a literatura
hispano-americana e a necessidade de estudo sobre a formação da subjetividade
do sujeito contemporâneo e seu reflexo nas escolhas literárias, tão ignoradas
pela crítica literária especializada, impõe-se relevante ao valorizar as
possíveis implicações entre literatura fantástica, mídia e práticas de
recepção.
PALAVRAS-CHAVE: Análise fílmica. Narrativa. Tzvetan Todorov.
Joseph Campbell. Realidade meta-empírica
1
APRESENTAÇÃO
A construção
da realidade meta-empírica, a qual se designa à análise, é formada a partir da
desconstrução da realidade pragmática por meio da inserção de elementos
fantásticos no cotidiano. Na realidade ficcional de O Labirinto do Fauno, devido ao seu caráter simbólico, o
meta-empírico é possibilitado devido a influências que vão desde arquétipos
femininos do inconsciente, teoria de Carl Gustav Jung, até a saga do heroi
pré-moderno teorizado por Joseph Campbell. Tal saga é o elemento, visto aqui
como paradigmático, que corrobora para uma desautomatização
do real na película em pauta, como será evidenciado ao longo deste artigo.
É de bom alvitre salientar alguns aspectos relevantes e
imbuídos sobre o tema ao qual se designa à análise, tal como a formação
subjetiva dos sujeitos na modernidade e pós-modernidade, pois estes são os
leitores/escritores que estão mudando o rumo da literatura contemporânea; a
literatura fantástica na América Latina, conceito este imprescindível para
melhor esclarecimento das temática que serão abordadas, assim como os conceitos
e paradigmas que subjazem na película pós-moderna do cineasta mexicano
Guillermo Del Toro.
É importante ressalvar que esta discussão se utiliza de
um viés estruturalista. Para melhor esclarecimento, a Crítica Estrutural foi
uma tendência baseada nas ciências naturais de racionalizar ou codificar os
fenômenos típicos da natureza humana em termos funcionais, daí o nascimento de
fórmulas prescritivas para a explicação da aquisição da linguagem e paradigmas
narrativos, a fim de descrevê-los e interpretá-los.
O
mundo na ótica dos estruturalistas, que se propuseram a desvendar as produções
humanas por meio da identificação de paradigmas presentes na “essência” de toda
humanidade, é largamente desacreditado, principalmente após conceitos como o de
desconstrução, proposto por Jacques Derrida, e a “arqueologia” de Michel
Foucault. Ambos por serem contrários a
ideia de essência são considerados pós-estruturalistas.
Contudo,
ainda é relevante a pesquisa daqueles que se dedicaram a analisar em forma de
estruturas toda a cultura humana. Por exemplo, a produção de roteiros para
cinema, teatro e televisão obedece à mesma tendência seguida pelas ciências
naturais durante o século XX, a diferença é que a tendência da lógica
matemática antes utilizada por praticamente todas as ciências naturais, hoje se
reduz a um plano específico de uma das áreas do conhecimento humano, a
Narratologia.
Considerar a expansão marítima europeia iniciada pelos
portugueses como o marco das realizações modernas é uma verdade mais do que
axiomática. Logicamente, as mudanças do final da idade média para início da idade
moderna foram gradativas, mas num ritmo constante e irreversível. Eis por
que mudanças irremediáveis como o nascimento do Estado Moderno, viabilizado
pela crescente centralização do poder, implicaram em novas iniciativas
econômicas a partir do Mercantilismo.
No campo
ideológico, surgiu o Antropocentrismo
como resposta aos questionamentos sobre o poderio hegemônico da Igreja
Católica, que reconhecia somente Deus como centro do universo. Logo, a
valorização das artes, da racionalidade, o acúmulo de riquezas, a crescente e
constante modernização dos centros urbanos, aliada às práticas mercantis
possibilitou os recursos necessários para a revolução da sociedade, cultura, e
economia europeia.
Desde a
antiguidade o mundo era explicado a partir de uma perspectiva mítica onde o
tempo era cíclico e sem fim, uma vez que Deus e as entidades do passado
Greco-romano eram inquestionáveis, o mundo ficara envolvido por uma zona de
conforto, logo, em uma plenitude; assim sendo, tudo tinha um valor absoluto e
absolutamente explicável pela fé e pelo mito.
1.1
QUANDO A LUZ É COMO A
ÁGUA, É HORA DE TEORIA.
Com as diversas mudanças filosóficas, comportamentais, e
econômicas de toda uma conjuntura social, a humanidade entrara em um súbito
pesadelo. A realidade tal como explicada pelos mitos e dogmas religiosos agora
se demonstrava insustentável e o mundo, nas palavras de Freud, passou por três
feridas narcísicas.
A primeira
foi a queda do Geocentrismo por
Copérnico, ao postular que a terra não é o centro do universo. A ferida
seguinte ao ego humano foi Charles Darwin com o livro A Origem das Espécies, que desfez qualquer menção sobre a nossa
origem divina (Criacionismo) e por
fim, o próprio Freud ao defender que a racionalidade, até então principal
motivo de orgulho da espécie humana, é a menor parte de nossa vida psíquica,
pois não seríamos senhores nem de nós mesmos, devido à predominância
involuntária do inconsciente.
Como muito bem coloca Marshall Berman, ao citar a novela
romântica A Nova Heloísa (1761), de
Jean-Jacques Rousseau: “tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se
acostumam a tudo” (Rousseau Apud
BERMAN, 1984, p.256). Para Berman, o forte apelo niilista, na qual nada neste
mundo vale a pena, é o que bem traduz o espírito do homem moderno que, depois
de passar por várias feridas narcísicas, desilusões e mudanças, percebe que
está dentro de um tourbillon social (BERMAN,
1982, p. 11).
Apesar dos inegáveis avanços tecnológicos decorrentes da
primeira revolução industrial iniciada pela Inglaterra no século XVIII,
observa-se o nascimento de um período de grandes contradições no século XIX,
conforme afirmam as autoras Aranha e Martins:
Nos grandes centros da Europa,
apesar da difusão das ideias democráticas, permanecem sem solução questões
econômicas e sociais que afligem a crescente massa de operários: pobreza,
jornada de trabalho de quatorze horas, mão-de-obra mal paga de mulheres e
crianças. (1993, p.231-2)
Se por um lado havia “ordem e progresso” nas ideias
científico–filosóficas no panorama cultural do século XIX, por outro, como já
demonstraram as autoras supracitadas, havia apenas injustiça social. Nascendo
em direta crítica ao capitalismo liberal e ao conservadorismo, surge o Socialismo e o Manifesto Comunista escrito em 1848.
A palo seco, a modernidade é um fenômeno de ruptura com
tudo aquilo concernente à estabilidade, zona de conforto e plenitude. Como
consequência, tem-se o desconcerto do mundo e seu descompasso.
Embora, a ciência tenha se transformado no grande mito
moderno, ainda há indivíduos fieis aos dogmas religiosos ao ponto do fanatismo
religioso, embora haja liberalismo econômico e viva-se em uma majoritária
democracia, ainda há países com regimes fortemente opressores e totalitários.
Ainda que se conviva em uma sociedade, isso não implica dizer que a mesma seja
homogênea, pois tudo converge a uma fragmentação do sujeito na pós-modernidade
na qual vivemos.
Mesmo não havendo um consenso entre os teóricos na
conceituação de modernidade e pós-modernidade, as características são
indeléveis e explícitas, pois o pré-moderno foi marcado pela mentalidade ainda
mítica, com puro apelo à fé e ao mito. Na modernidade, devido às feridas
narcísicas da humanidade, a sociedade entrou em uma profunda frustração, por
decorrência, de não sermos mais o centro do universo, não sermos filhos de um
Deus e nem senhores de nós mesmos. Portanto, a subjetividade na pós-modernidade
é marcada pela angústia de não sofrer, preservar aquilo que ainda se tem como
uma proteção aos estímulos geradores de trauma, que seria tudo aquilo que foge
do esperado, do automatizado. Como reflexo disso nas manifestações literárias,
Bella Josef pontua que:
A literatura fantástica é
aquela em que se marca a emergência da questão do inconsciente. A narrativa
fantástica subverte toda a racionalidade, a linearidade da narrativa e a
onisciência do narrador, utilizando-se de vários processos. Há, assim, a quebra
da relação de causa e efeito. (JOSEF, 1986.p.223.)
1.2 VERTENTES DO FANTÁSTICO E A HERMENÉUTICA LATINA-AMERICANA
Em resposta ao caos do mundo moderno – no
caso da Espanha, o autoritarismo fascista – a literatura passa a ocupar mais
explicitamente o cargo de crítica da sociedade, mas também espelho da mesma que
a criou.
Observa-se, então, que quando um texto
literário é definido como simples imitação do real, há um aumento da
dependência entre a literatura e a realidade – como observada por Aristóteles
com sua noção de verossimilhança.
Segundo
Freud, o pai da psicanálise, quando a realidade torna-se insuportável de tão fria e cruel, é necessária uma válvula de
escape, como uma forma natural do indivíduo de proteger-se dos fatores que o
levariam a uma frustração.
No campo da teoria literária, os formalistas
russos definem a literatura como um escape do automático, das situações
rotineiras, uma segunda visão sobre uma situação corriqueira, pois a arte
literária é considerada o enriquecimento de pequenos detalhes, o que há de
especial dentro de um emaranhado de coisas.
Na
perspectiva dos formalistas russos sobre
a criação literária, nota-se que até a obra mais realista, em seu sentido
prosaico, não passa de uma possibilidade, de uma versão sobre a nossa trivial
realidade, que está tão longe quanto qualquer realidade fantástica, pois ambas
recriam para si versões e não fatos, sendo estas trabalhadas na polissemia do
discurso do autor, que a recria como bem entender. Segundo Josef:
Desde
Saussure, sabemos que a linguagem pertence à ordem do simbólico (isto é, mundo
da cultura e da civilização) e dentro dela efetua-se um sistema que contraria
as próprias regras do simbólico: a do imaginário. Na literatura fantástica não
se trata de crer no real para reconhecer o imaginário, mas, tomar por
imaginário o real que recusamos assumir. No fantástico o inconsciente vem à
tona. (1986, p. 219)
A partir
dessa constatação, observa-se que enquanto na linguística a linguagem humana é
definida como a capacidade de expressão por meio de línguas convencionadas por
signos linguísticos, na literatura fantástica ocorre algo equivalente, pois a
literatura passa a ser o próprio signo que segundo Saussure é de natureza
arbitrária. Com efeito, a arbitrariedade do discurso na literatura traz à tona
a insegurança, a imprecisão dos fatos e o relato do dúbio, pois se o signo
linguístico é relativo, a literatura desta vertente não foge à regra.
Na América Latina, em meado dos anos 30 ou
40, nasce uma tendência literária, chamada Realismo
mágico, nos moldes do Surrealismo
(último movimento vanguardista europeu lançado por André Breton em 1924 com o manifeste Du Surréalisme) que visa
potencializar a desconstrução do real, pois o fantástico na literatura
possibilitou uma abertura para temas como homossexualidade, sensualidade
exarcebada, necrofilia, incesto, todos os temas possíveis de censura sem ser vítima
da mesma, pois tudo é delegado à figura do monstro, do demônio ou da loucura.
Não se sabe se os acontecimentos
sobrenaturais realmente acontecem ou são produtos da imaginação da personagem,
pois até mesmo o leitor compartilha desta dúvida, devido ao emprego do dúbio e
da incerteza como bem define o novelista, diplomata e escritor guatemalteco
Asturias:
Meu
realismo é mágico porque revela um pouco de sonho, tal como o concebe os
surrealistas. Tal como o concebe também os Maias em seus textos sagrados. Lendo
estes últimos dei-me conta de que existe uma realidade palpável sobre a qual se
enxerta outra realidade, criada pela imaginação, e que se envolve de tantos
detalhes, que ela chega a ser tão “real” como a outra. Toda a minha obra se
desenvolve entre essas duas realidades: uma social, política, popular, com
personagens que falam como o povo guatemalteco, a outra imaginária, que os
encerra em uma espécie de ambiente e de paisagem de sonho. (1986, p. 186)
1 CONSIDERAÇÕES SOBRE
CINEMA, LITERATURA E RECEPÇÃO
Ganhador de três prêmios do Oscar de direção de arte, de
fotografia, de maquiagem; premiado pelo Bafta
Film Award de figurino, de melhor filme estrangeiro e maquiagem, direção
artística, roteiro e trilha sonora, no ano de 2007; O Labirinto do Fauno torna
ainda mais crível a Teoria da Montagem,
que pregava a ideia de que a narrativa deve seguir e favorecer a estrutura do
pensamento. Logo, o cinema perderia a sua função descritiva da realidade,
deixando de reproduzi-la para produzi-la conforme a intencionalidade da
linguagem usada pelo diretor em seus filmes. Isto se verifica, por exemplo, na
vertente cinematográfica, dos anos 30, conhecida como Expressionismo alemão, na qual a manipulação da imagem maximizava o
efeito estético do filme na plateia.
É interessante evidenciar o impacto e a necessidade de
sustentação da impressão de realidade sobre o espectador, enfocada pela Teoria
da Montagem, pois estes aspectos são bastante trabalhados em O Labirinto do Fauno, pois se observa
que dos prêmios conquistados pelo filme, todos são relativos à produção
técnica, com efeito, dificilmente a película de del Toro ganharia o Oscar sem o
investimento alto nos mecanismos de manipulação da imagem, possibilitados pela
avançada tecnologia atualmente disponível e pelo alicerce teórico e pioneiro de
Eisenstein e sua Teoria da Montagem. Desnudando a preocupação dos cineastas com
a famigerada Impressão de Realidade
trabalhada pelo cinema, partindo da concepção de quanto mais próximo da
realidade, mais crível e menos questionável passa a ser a veracidade dos fatos
veiculados pela narrativa. Revelando assim, a dinâmica relação entre autor,
obra e comunicação
2
O LABIRINTO DO FAUNO, UM ESPETÁCULO ATERRADOR DA MORTE
Ao desvendar o pano de fundo da narrativa –
ambientada no período pós-guerra civil espanhola no ano de 1944 – o narrador desautomatiza
as expectativas sobre a história deste período ao contrapor um mundo cruel, de
guerra e ranger de dentes a uma realidade mágica onde não há mentiras ou dor. Ao desvendar o pano de fundo da narrativa e a
dualidade da mesma, torna-se evidente a existência de uma realidade paralela a
do período retratado no filme.
Moama, princesa do submundo, que era curiosa
e apaixonada pelo mundo dos humanos, transgredira os portões do mundo
subterrâneo. Uma vez do lado de fora, ela morrera cega, sem lembranças do seu
passado e prisioneira daquela vil realidade até o aguardo retorno ao seu reino
perdido.
Em
outro corpo, tempo e espaço, Moama, agora Ofélia, descobrirá em sua jornada labiríntica
uma realidade mágica tão aterradora quanto qualquer outra, mas que para
acessá-la por completo terá que passar por três provas antes da lua cheia a fim
de provar ao seu mentor que a humanidade não
corrompera o seu espírito ainda puro.
O signo da mudança apresenta-se sob
diferentes máscaras no decorrer da narrativa e configura a primeira etapa do Monomito. Das máscaras a serem
reveladas, é a fuga do submundo em que vivia a personagem que primeiramente
será analisada.
2.1
MUNDO COMUM DA
HEROÍNA ANTES DO INÍCIO DA NARRATIVA
Motivada por seu aguçado interesse sobre o mundo dos
humanos, Moama não se limitava as experiências normais permitidas aos membros
comuns da comunidade em que vivia, queria ir além da sua trivial realidade.
A sua curiosidade pode ser definida como uma incompletude
da alma que por um desejo irreprimível de conhecer os segredos pertinentes ao
mundo dos humanos atravessa os portões do submundo, e devido a sua transgressão
à ordem natural, logo morre em seu primeiro contato com o tão desejado mundo
humano. E como represália para todo aquele que ousa desobedecer às convenções
sociais, ela é permanentemente afastada de seus pais, seu povo.
A fuga da princesa pelas escadarias de seu mundo obscuro
repleto de sombras representa a ascensão do indivíduo na busca pelo
conhecimento, uma retomada dos valores platônicos sobre a alma, pois o plano
terrestre seria dividido em duas partes: o mundo da cópia e o mundo ideal, das
ideias. Para tal tarefa, deve o indivíduo pertencente à cópia abdicar-se dos
prazeres do corpo, pois este é concebido como percalço para uma plena ascensão
ética ou moral, que devido a essa desmedida é imediatamente punida.
Para voltar ao seu mundo comum deve provar sua redenção
da transgressão que realizara. O submundo e suas sombras representam a
realidade da qual o indivíduo (Moama) deve sair para vislumbrar, o que era para
ela, o verdadeiro mundo das realidades, correspondente em Platão ao mundo das
ideias.
Os portões do submundo é o acesso às escadas que saem das
sombras em direção à luz, ou seja, os portões uma vez abertos configuram
segundo Chevalier e Gueerbrant:
Um valor dinâmico, psicológico; pois não somente indica
uma passagem, mas convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a um
além... A passagem à qual ela convida é, na maioria das vezes, na acepção
simbólica, do domínio profano ao domínio sagrado. (2009, p. 735)
Essa concepção corrobora ainda mais a aproximação do
percurso mítico da personagem com a simbologia do indivíduo rumo ao
conhecimento, cujo acesso torna-se restrito em muitas culturas, sobretudo no
mito cristão do paraíso perdido de Adão e Eva.
É através desta porta, ponto de acesso entre os dois
mundos, que se desdobrará toda a narrativa.
2.2 CHOQUE DE REALIDADE: A ENTRADA DO PATRIARCADO
Diferente do projeto cultural para o corpo feminino
(reprodução), o masculino está condicionado o tempo inteiro a provar sua
masculinidade por medo de uma castração fálica simbólica por tornar-se menos
homem, no sentido que, se não agir conforme o molde para o seu corpo, i.e.,
caso não corresponda à altura das expectativas sobre o seu comportamento, ele
se tornará menos homem, pois ser homem é um título de poder que se não for
constantemente defendido ou exercido acaba-se por perdê-lo, para outro homem ou
para mulher.
Sob a perspectiva do gênero como construção, observa-se
que o masculino passa a ser definido como status
a ser conquistado por àqueles predestinados a essa classificação, pois se torna
homem quem reprime a sua feminilidade latente a todo custo, porque esta durante
séculos tornou-se sinônimo de fraqueza, de subserviência.
O homem é criado desde criança e cobrado o tempo inteiro
para ser o dominador da espécie, se fracassa é renegado por outro, pois não é
digno de ter o título de poder: o poder do macho alfa, predominante, sendo este
explicitado pela figura do falo como
componente simbólico da sexualidade e do poder masculino em seu nível
arquetípico, a fim de reforçar o mito do macho; para que o homem, em forma de
mito, exerça a sua peculiar autoridade na sociedade.
Em O labirinto do fauno, capitão Vidal, por representar a força
militar fascista, a figura do macho demonstra-se ainda mais opressora devido
aos horrores da guerra. A dimensão simbólica do falo é representada pela figura
do relógio que herdara de seu pai, um grande oficial do exército, pelo qual
nutre grande amor e admiração por sua conduta honrosa de morrer em guerra.
O relógio compartilhado por
ambos é símbolo representativo dos tempos modernos iniciados pelo estopim da
Revolução Industrial do século XVIII em que traduz “a chamada morte de Deus”,
termo popularizado a partir das ideias do filósofo Friedrich Nietzsche, devido
ao fim da noção do tempo como figura mítica e cíclica, sem fim. Estes novos
tempos são marcados pela ruína, velhice e por fim a morte. Premissa essa
representada na mitologia Greco-romana pelo poderoso e tirano Zeus que devora seus
filhos com receio de perder o seu imperioso poder.
Por ser poderosa e austera, a
figura do homem é altamente coercitiva, em especial, na relação entre mãe e
filha. Vidal representa o chamado ao mundo exterior dessa relação simbiótica,
ele é o furor que seca o líquido amniótico que prende Ofélia ao corpo da mãe.
A inimizade entre a garota e o capitão acaba
por estragar a ideia de felicidade absoluta para Ofélia que é estar a sós com a
sua mãe Carmem. Esta por sua vez, não aparece muito no desdobramento da
história, mas é tão importante para a narrativa quanto sua filha.
Carmem apresenta constantemente
um medo tipicamente feminino, o medo materno. Ela submete-se aos caprichos do
marido a fim de agradá-lo e, com efeito, garantir um futuro melhor para seus filhos,
pois grávida e ao mesmo tempo doente, ela é atormentada o tempo inteiro pela
guerra, pela fome, pelos filhos, pela morte do primeiro marido e a fraqueza
causada pela doença.
Embora o heroi seja encarnado
geralmente por uma figura masculina Campbell ressalva que a mulher também pode
ocupar esse lugar, por exemplo, na civilização Asteca o paraíso destinado às
mulheres mortas em parto era o mesmo dos guerreiros mortos em combate. Neste
caso, nas palavras de Jung:
A exacerbação do feminino
significa uma intensificação de todos os instintos femininos, e em primeiro
lugar do instinto materno. O aspecto negativo desta é representado por uma
mulher cuja única meta é parir. O homem, para ela, é manifestamente algo
secundário; é essencialmente o instrumento de procriação, classificado como um
objeto a ser cuidado entre as crianças, parentes pobres, gatos, galinhas e
móveis. A sua própria personalidade também é de importância secundária;
frequentemente ela é mais ou menos inconsciente, pois a vida é vivida nos outros
e através dos outros, na medida em que, devido à inconsciência da própria
personalidade, ela se identifica com eles. (2000, p. 97)
Contudo o caráter heroico da
personagem que sacrifica as suas vontades e o seu próprio corpo a fim de
garantir um futuro melhor para seus filhos é totalmente ignorado pelos olhos do
capitão Vidal, que pensa ser natural à mulher o comportamento subserviente às
vontades do homem, pois, mulheres não apresentam nenhuma ameaça. Segundo uma
análise Crítica do Discurso realizada pela mestra em Estudos Interdisciplinares
sobre Mulheres, Gênero e Feminismo,
Sabrina Uzêda:
Esse discurso como prática
social se origina, na transmissão e na legitimação de ideologias sexistas e/ou
racistas, valores e doutrinas que colaboram para a naturalização de discursos
particulares como sendo universais, a respeito daquilo que é “normal” ou
“essencial” no momento de definir um fruto social. Essa ideologia construída
nos discursos é geralmente a do branco, masculino, ocidental, de classe média
ou superior, e estão imbuídas posições que vêem raças, classes, grupos e sexos
diferentes dos seus como secundários, inferiores e subservientes. (2007, p. 49)
É justamente o ponto de vista
misógino do capitão que o leva à ruína, devido ser a governanta (braço direito
do capitão) uma rebelde ao governo totalitarista, que apoiada pelo seu irmão,
retira o poder das mãos de Vidal por meio de sua morte.
No ponto de vista simbólico, Chevalier e Gueerbrant em seu dicionário de símbolos
define a presença do pai como:
Símbolo da geração, da posse, da dominação, do valor.
Nesse sentido, ele é uma figura inibidora; castradora, nos termos da
psicanálise. Uma representação de toda forma de autoridade: chefe, patrão,
professor, protetor, Deus. Ele representa a consciência diante dos impulsos
instintivos, dos desejos espontâneos, do inconsciente. (2009, p. 678)
De acordo com os autores
pode-se inferir que, apesar de Ofélia não ter pai, Vidal exerce sobre ela a
função do mesmo, ou seja, é a transcendência de uma construção social que faz
presente aquilo que já nem mais existe. Pois, não é pai no sentido familiar,
mas no sentido de instituição social, um
lócus no qual o poder da figura paterna pode ser imposto.
É justamente nesse contexto
conturbado de forças opressoras que Ofélia é atraída para o labirinto por meio
de uma pequena fada à noite enquanto todos dormiam e ela segue o chamado até a
entrada do seu insólito destino cuja representação espacial dá-se pela caverna
presente no labirinto.
2.3 UM CHAMADO À AVENTURA: O DESPERTAR DO PARAÍSO
Os acontecimentos desenrolados no terceiro capítulo do
filme correspondem ao terceiro estágio da Saga
do heroi ou Monomito. A passagem que faz referência a esse tópico
mostra a personagem descendo as escadas em espirais até o centro da caverna,
que no labirinto se configura como um antro – cova profunda e escura.
Segundo os autores Chevalier e
Gueerbrant (2003) no tocante ao seu aspecto positivo, a caverna representa o
arquétipo do útero materno, figura nos mitos de origem, de renascimento e de
iniciação de numerosos povos, um retorno ao eu primitivo. Considerada como
antro a caverna representa, segundo, os autores supracitados:
O outro aspecto simbólico da caverna, o mais trágico dos
aspectos. O antro, cavidade sombria, região subterrânea de limites invisíveis,
temível abismo, que habitam e de onde surgem os monstros, é o símbolo do
inconsciente e de seus perigos, muitas vezes inesperados. (2009, p.213)
Assim sendo, o acesso ao antro presente no centro do
labirinto metaforiza o contato mais íntimo da personagem consigo mesma, pois a
figura arquetípica do labirinto configura-se como um sistema de defesa que
anuncia a presença de algo importante, valioso. Este por sinal apresenta-se de
forma espiral assim como as escadas que dão acesso ao antro do labirinto.
As escadas em espirais são as mesmas que a princesa
utilizou para escapar do submundo, com efeito, apesar de serem as mesmas
escadas, a direção e seu sentido decorrente geram significados distintos.
Enquanto que na fuga do submundo a escada representou à ascensão do indivíduo
que sai do mundo das sombras em busca da luz (ética, moral), a descida
representa a entrada ao mundo subterrâneo, a psique inferior do indivíduo o seu
âmago.
A caverna como símbolo materno
gera uma nova realidade para a personagem, que devido as espirais voltadas ao
centro da terra, representa o regresso do indivíduo as suas origens, ou seja, a
realidade mágica antes abandonada pela personagem. Porém, como é comum a
natureza dos signos serem ambivalentes, nem tudo pode ser tomado como verdade,
pois todos os eventos são noturnos, fazendo menção ao sono, a imaginação, o que
possibilita a inserção do fantástico devido à possibilidade de sonhos, ou
delírio onírico da personagem, uma vez que ninguém tem acesso a esta realidade
noturna, além dela.
2.4 O ENCONTRO COM O MESTRE: AJUDA SOBRENATURAL
Portanto, o monstro
é concebido nos mitos iniciáticos (Miller,1987) como o portador dos tesouros e
a figura responsável por reprimir o medo da personagem diante das dificuldades,
assim como o auxílio nas tarefas que serão designadas à personagem a fim de que
por meio destas se torne digna do tesouro a ser revelado pelo mentor,
Fauno.
Como de praxe a etapa do Monomito, Ofélia, apesar de não duvidar da existência do Fauno e
tampouco dos acontecimentos fantásticos desenvolvidos a partir desse encontro,
a personagem se recusa ao chamado à aventura. Tal comportamento passa a ser
mais bem justificado nas palavras de Vogler:
O problema do herói, agora, passa a ser como ele irá
responder ao Chamado. Ponha-se na situação dele e verá que é um momento
difícil. Estão lhe pedindo que responda "sim" a uma grande incógnita,
a uma aventura que vai ser emocionante, mas também perigosa, e que pode ameaçar
sua vida. De outra forma, não seria uma aventura de verdade. Você está diante
de um limiar de medo, e uma reação compreensível é hesitar, ou mesmo recusar o
Chamado. (1998, p.115)
A hesitação ou a falta da mesma na
personagem, ao se encontrar com o monstro, é a linha tênue que diferencia o fantástico do realismo mágico. No fantástico a explicação dos acontecimentos maravilhosos é consensual, enquanto que
na realidade mágica a justificativa
para a ocorrência dos acontecimentos considerados estranhos não é compartilhada por todas as personagens como assim
sugere Todorov:
Em um mundo que é o nosso, que
conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento
impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento
deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos
sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que
são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade,
e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma
ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a
diferença de que raras vezes o encontramos. (1996, p.15)
No filme isso não ocorre devido à falta de
consenso, pois o liame entre o mundo mágico e o mundo familiar nunca é
desfeito, pois não é passível de explicação.
Com
efeito, a ambiguidade dos acontecimentos persiste mesmo depois do fim da
narrativa. Até porque, somente a personagem principal entra em contato com o
mundo mágico, enquanto que para se tornar fantástico deveria haver um consenso
entre as personagens, para compactuar a mesma opinião sobre os acontecimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fato é que apesar do incomensurável lapso
temporal que separa as longínquas narrativas de no mínimo 2.000 mil anos das
atuais, estão atualmente mais próximas do que jamais estiveram graças aos
estudos desenvolvidos por Campbell
acerca da mitologia que muito se assemelham ao do russo Vladimir Prop em
sua Morfologia
dos contos de fadas, que divide as narrativas do gênero maravilhoso em
diferentes estágios.
O paradigma narrativo proposto por Campbell
que subjaz na película mexicana de del Toro se torna possível devido à presença
constante de arquétipos relacionados ao
sagrado feminino que trazem em sua leitura a noção da morte como possibilidade
de renascimento, de transcendência,– não há um término, mas um ciclo sem fim.
Pensamento este desenvolvido graças aos estudos da psicologia analítica de Jung
que serve de força propulsora ao fantástico no filme.
O Realismo
mágico na obra audiovisual consiste na expectativa de saber se os
acontecimentos foram reais ou não, pois segundo Todorov quando os
acontecimentos por mais incríveis que sejam, ou quando pouco plausíveis de
esclarecimento, há sempre uma explicação racional para tudo e todos os
personagens da narrativa compartilham da mesma opinião (TODOROV,
1996), caracterizando dessa forma o Estranho.
O Maravilhoso ao contrário, concebe os
acontecimentos sobrenaturais como parte do mundo corriqueiro, pois todos os
personagens, assim como o leitor, concordam que tudo é possível. Fato ocorrente em o Labirinto do Fauno, pois há um flerte
entre as duas realidades como se essas fossem possíveis ao mesmo tempo; não há
alternância e tampouco esclarecimento, ao
contrário das demais apresentadas.
Assim sendo, o presente artigo buscou
relacionar paradigmas comportamentais, ideológicos e até mesmo sexistas à
crítica literária e fílmica, em uma narrativa deslocada do hegemônico polo
cultural do cinema Hollywoodiano.
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